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ENSAIOS

de escrita, culinária, economia e finanças, bem-estar e reflexões sobre parentalidade

Foto do escritorJuliana Machado

Duas de mim

Atualizado: 14 de set.



Existem duas Julianas que moram dentro de mim e elas não se entendem direito.


Na verdade, eu acho que eu tenho muitas inquilinas. Tem a Juliana mãe, evidentemente a mais espaçosa, tem a Juliana profissional, tem a religiosa, a estudante, a dorameira, a cozinheira, a esposa, e por aí vai. Elas foram se somando ao longo da vida, nenhuma delas realmente algum dia me deixou. Então elas têm que ir se apertando a cada uma nova Juliana que chega. Mas essas aqui, apesar de não serem melhores amigas, até que conversam e se entendem no meu espaço e no meu tempo.


Mas tem duas delas que não conseguem se entender de verdade. Elas discutem sempre que se encontram, gritam de dentro de mim a ponto de me deixar confusa, baratinada mesmo, disputam espaço e uma não vê com bons olhos sempre que a outra ganha um pouco mais de atenção. É a boazinha e a feminista, como eu as chamo.


A Juliana boazinha é a que entende tudo e todos, se esforça sempre pra dar contar de todas as atividades sem pesar nada para ninguém, que pensa nos presentes, nas conversas, nas atividades com as filhas, nos amigos e parentes, que toma para si o problema dos outros, que tem um ideal de perfeição arraigado dentro de si, que pensa em Deus e na vida após a morte, que se julga e sente culpa, muita culpa, a cada vez que parece sair da linha. Ela é uma ótima companhia para adultos e também crianças e é daquelas que vai ter o que você precisa dentro da bolsa, seja um curativo bonitinho ou um remédio para enxaqueca. Caso ela não tenha, ela vai arranjar quem tem, fique tranquilo.


A Juliana feminista é aquela que estudou muito e refletiu bastante no mundo de hoje, que vê a cada dia com mais clareza a dureza da vida e os desafios não apenas das mulheres, mas de vários grupos minoritários. Ela é politizada e gosta disso, se engaja nas ações e grupos com os quais compartilha algum valor, problematiza tudo e tem sempre uma resposta na ponta da língua seja qual for a polêmica da vez. Ela não engole sapos, defende seus pontos de vista e valores e não aceita calada injustiças. Toda ação e escolha é política, diz ela. Então a todo momento ela vê uma oportunidade de tornar o mundo mais justo e equânime, seja nas compras do supermercado ou na escolha do passeio do fim de semana.


A Juliana feminista grita muito alto e fala demais dentro de mim, mas a Juliana boazinha está aqui já faz muito tempo, nem sei dizer quanto. Ela, aliás, parece ótima no convívio geral e é talvez a minha faceta mais conhecida, mas ela está cansada, muito cansada mesmo, e se sente só. Já a feminista é mais novinha, mas é também encantadora, irresistível até eu diria por ser movida por suas paixões e crenças. Só que as bandeiras são tantas e a luta é tão grande que ela nunca está satisfeita e aí não tem paz...


Eu já disse a elas: conversem, deem as mãos! Quem sabe uma não ajuda a outra nas suas dificuldades? A feminista pode ajudar a boazinha a não ficar tão cansada tentando atender a tudo e a todos e esta por sua vez pode ajudar a outra a asserenar e encontrar satisfação nas pequenas vitórias...

Mas elas resistem.

Naquele outro dia, por exemplo, diante de uma hora de almoço não planejada, a Ju boazinha estabeleceu: vamos respeitar os horários e rotinas e atender às vontades gerais e ir naquele restaurante que tem comida diversa e brinquedoteca. A Ju feminista deu um pulo! E a alimentação balanceada? E a segunda sem carne? E a opção por um restaurante mais barato e que tenha posicionamento político mais progressista? Ela perdeu feio, porque, claro, a maioria costuma preferir a Ju boazinha mesmo. Mas perdeu gritando e não largou o assunto o resto do dia.

E naquela outra ocasião que a amiga relatou uma situação desafiadora em sua relação? Nossa, nesse dia quase as Julianas vão às vias de fato dentro de mim. A Ju B queria dizer: amiga, perdoa, ele está se esforçando, tenta ver o lado dele também, vai ser mais simples e melhor assim... Mas a Ju F não aceitava, queria colocar as cartas na mesa e apontar todas as falhas daquele cidadão e dizer o quanto o machismo imperava e se perpetuava a cada renúncia que a amiga fazia em prol de um bem considerado maior.


Veja, nenhuma delas está errada, não no meu entender (claro, né, elas são minhas, você está pensando). Mas a confusão que elas causam diariamente dentro de mim acelera o meu coração e pensamento, mas também paralisa muitas vezes as minhas ações e decisões. Ou às vezes eu me aborreço e não ouço nenhuma delas. E me lasco.

...


Não ouso sonhar com o tempo em que serei uma só, integral all the time.

Nem sei se é possível ou se quero que alguma Juliana minha parta e me deixe para sempre – elas são todas parte de mim.


Mas ah como seria bom se elas de vez em quando se entendessem, se ouvissem, se se deixassem permear uma pela outra...

Maturidade que chama, né? Aquela que vem com o tempo... mas quanto tempo? eu me pergunto...


Às vezes nem precisava tanto, bastava um pouco de silêncio mesmo, não o de fora – que é difícil mas possível, mas aquele do lado de dentro, aquele que asserena a alma e traz paz...


-----

Obs. 1: Você está se perguntando quem venceu na conversa com a amiga? Olha, a minha sorte é que eu tenho boas amigas e essa no caso conhece múltiplas Julianas, às vezes mais do que eu gostaria, rs. Então eu dei voz para as duas Jus, oportunidade raríssima, e garanti meu amor e apoio incondicional, apesar das loucuras. E fim. Fim nada, que a vida é dura, mas segue. Até o próximo embate.

Obs. 2: Sim, meditação, eu sei... mas cadê o tempo diante de tantas demandas de tantas Julianas? Cenas dos próximos capítulos, a ver.

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