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ENSAIOS

de escrita, culinária, economia e finanças, bem-estar e reflexões sobre parentalidade

Eunice Paiva

Foto do escritor: Juliana MachadoJuliana Machado

Nesse 8M, ela ainda está aqui. Que bom!


Não sou só eu, né?

O mundo se apaixonou por esta nobre senhora, que aprendemos a amar pelos olhos do seu filho Marcelo Rubens Paiva e na pele da impressionante Fernanda Torres.

No meu caso, posso dizer que o amor pode até ser novo, porque a versão mãe e cuidadora do dia a dia me encantou demais, mas a paixão e o interesse são antigos. Quem estuda e acompanha o mundo dos direitos humanos já ouviu sua história e já sabe da sua força faz tempo, porque ela lutava fazia muito tempo. E eu, como a essa altura você já sabe, tenho uma queda pela história das mulheres fortes que o mundo teima em querer esquecer.


Dia das mulheres chegando, eu tinha em mente outra musa para homenagear.

Como, no entanto, fechar os olhos a essa história tão rica quanto dolorosa, que o mundo inteiro passou a conhecer, sem saber que a vida real foi ainda mais profunda e cheia de nuances?

E brasileira! Ah como eu queria falar das brasileiras!


Então mudei de planos e decidi eu também falar sobre a Eunice, ela merece a homenagem e nós merecemos conhecer a sua luta, a sua história, as suas memórias. O filme Ainda estou aqui, claro, é um trabalho incrível e todos temos a obrigação cívica de assistir, mas é um recorte do que foi a vida desta mulher. Quero aqui dividir outros aspectos da vida dela.


*****

Eunice nasceu em 07/11/1929, em São Paulo. Descendente de italianos, teve uma infância e juventude tranquilas e era conhecida por gostar de ler e saber falar muito bem inglês e francês. Não era comum as mulheres da sua família continuarem os estudos, mas ela se formou em Letras ainda bem nova em uma prestigiada universidade paulista, onde conheceu seu futuro marido, o Rubens.

Eles se casaram alguns anos depois e tiveram 5 filhos. O Marcelo foi o quarto filho, único menino, e foi quem escreveu o livro sobre a vida da mãe.


O Rubens foi deputado federal no governo de João Goulart. Ele teve o mandato cassado pela ditadura, se exilou e retornou um tempo depois. Foi depois desse regresso que ele foi sequestrado, torturado e assassinado nos porões do DOI-CODI no Rio de Janeiro. Desde esse dia, Eunice nunca mais viu o marido.


Ela também foi presa e torturada, embora sem violência física, mas foi solta em alguns dias.


Começou aí a sua luta para ter notícias dele, dos motivos que o levaram à prisão e como soltá-lo. Ela precisou também lutar para reorganizar sua vida, as finanças, cuidar dos filhos e tal. Depois a luta mudou para saber onde estava o corpo do marido, para ser reconhecida como viúva e responsabilizar os culpados pelo desaparecimento do pai dos seus filhos. Essa parte está bem retratada no filme.


Mas ela fez mais que isso, bem mais. Essa foi só a sua luta pessoal. Digo “só” não para diminuir a parte pessoal, essa em si já gigante, mas para deixar claro o quanto mais ela fez profissionalmente, em defesa de grupos vulneráveis.


Eunice sempre teve interesse pelos outros, pela comunidade. Rápido se envolveu com causas humanistas, relacionou a sua dor pela perda do marido às dores dos demais grupos minoritários, vulneráveis, como a causa indígena, e atuou em seu favor.

Ela se formou em direito em 1973, com 47 anos. Foi a forma como escolheu lutar, era um protesto quase, um símbolo da sua resistência. Como advogada, atuou na defesa de causas indígenas, das suas terras e da sua dignidade. Eram tempos violentos demais, mas ela seguia expondo as violências que encontrava. Em 1983, escreveu com Manuela Carneiro da Cunha um artigo para a Folha chamado “Defendam os Pataxós”, que foi um marco na luta indigenista e serviu de referência para outros povos indígenas, inclusive de outros países.


Defendeu também o povo indígena Zoró, no Mato Grosso, que corria sérios riscos de extinção, tão forte era a violência contra seus pertencentes e suas terras. Segundo documentos oficiais da própria FUNAI, no território deles já havia diversos invasores, estradas de terra e planos de ocupação de 24 mil hectares por uma cooperativa de agricultores do Paraná, tudo, claro, com apoio do governo local e estimulado pela ditadura militar, que ansiava pela ocupação de todo o território nacional, à sua maneira.

Quando Eunice chegou a esse povo, a ditadura na verdade já tinha acabado, mas os processos que haviam se iniciado sob a sua tutela, de exploração, desmatamento e ocupação daquela terra pelo agronegócio estavam em pleno curso. Ela então estudou o caso e elaborou um parecer jurídico em favor da demarcação das terras indígenas do povo Zoró. Ela disse

"Os direitos dos índios à posse de suas terras são direitos indisponíveis e que não podem ser negociados, inexistindo qualquer impugnação válida capaz de anular, restringir, extinguir ou modificar direitos da comunidade Zoró sobre a terra que é o seu 'habitat' natural."

O seu parecer foi aprovado e no ano seguinte a terra foi demarcada. O povo Zoró persiste!


Ela atuou ainda na defesa de outros povos, como os Kayapó Menkragnoti, no Pará. Foi nesse caso que o grupo no qual estava foi barrado na entrada do Palácio do Planalto e, unidos, forçaram a entrada, num movimento mais simbólico que efetivo, mas que funcionou. Engraçado que eu lembro dessas imagens no jornal da TV da época. O presidente da época, Sarney, não teve outra saída senão recebê-los. Danada essa moça e seus amigos!

Lá estava um general militar e você pode imaginar como Eunice, com o histórico que tinha do desaparecimento do seu marido, se sentiria na presença de um deles. Ainda assim, ela cumpriu o seu papel e defendeu o povo indígena diante do presidente e do general ao seu lado. Essa demarcação de terras demorou a sair, só veio em 1993 no governo Itamar, mas saiu.


Ela ainda atuou em diversas frentes na defesa dos povos indígenas de todo o Brasil, foram mais de 300 povos e 60 demarcações de terras influenciados pelos seus trabalhos. Isso incluía interferir em projetos de estradas, linhas elétricas, fazendas etc. Não importava, ela ia pacientemente atrás. Seus livros, pareceres e artigos são estudados até hoje como referências no assunto, todos ainda muito atuais. Por causa desse interesse dela, dos seus estudos e conhecimento na área, ela foi consultora da Assembleia Nacional Constituinte na época da elaboração da nossa Constituição Federal.


E tudo isso cuidando dos 5 filhos e sem descuidar das suas lutas pessoais.

Eu acho incrível aliás como ela transformou também a sua luta pessoal por notícias sobre o marido como um ato de resistência à ditadura militar, à opressão, ao apagamento das memórias, num processo que beneficiaria ao país como um todo. Claro, quem esquece a própria história está fadado a repeti-la.

A Eunice liderou as campanhas pela abertura dos arquivos sobre as vítimas da ditadura, num processo até hoje difícil de ser enfrentado pelos nossos tribunais e governantes. Era vigiada, observada, censurada. Ainda assim, não desistia. Como era corajosa essa mulher!

Ela participou das ações para a promulgação da Lei nº 9.140/1995, que reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante a ditadura militar. Ela estava lá na hora em que o presidente Fernando Henrique assinou a lei – ele era amigo pessoal da família, mas ainda não tinha feito nada para tratar da questão dos desparecidos.


Foi então que, em 23 de fevereiro de 1996, após 25 anos de luta por memória, verdade e justiça, ela conseguiu que o Estado brasileiro emitisse oficialmente o atestado de óbito de Rubens Paiva, naquela famosa foto que emocionou a todos nós. Como é forte ver alguém feliz por ter alcançado um atestado de óbito! Não consigo imaginar a dor dentro daquele peito... e o sorriso no rosto!

Pesquisa livre na internet
Pesquisa livre na internet

Depois, ela ainda pressionou para a formação da Comissão Nacional da Verdade, que foi enfim autorizada no governo da presidente Dilma Roussef. Foi durante esse processo que ela descobriu a primeira prova concreta do assassinato do Rubens, em 2012 – um documento que comprovava a sua entrada em uma unidade do DOI-CODI. Seu corpo, todavia, nunca foi encontrado.

Os documentos finais desses trabalhos são primorosos, mas ainda não conseguimos como país enfrentar esse desafio e assim eles seguem sem solução. Uma pena mesmo...


*****


Eunice morreu em 13/12/2018, aos 86 anos. Ela convivia com o alzheimer por 14 anos já. Ainda aqui mais um símbolo dessa mulher – lutou tanto pela verdade, pelo direito à memória e sofreu ela mesma os revezes dos esquecimentos em razão da doença!


Sobre ela, o filho Marcelo disse

Por anos, ela [Eunice] não o perdoou [Rubens] por colocar a família em risco, numa luta desigual, desorganizada, praticamente perdida. Para muitos meu pai foi um herói que não fugiu à luta. Para ela, deveria, sim, ter seguido para o exílio, quando soube que a família poderia passar pelo que passou. Mas lutou por ele a vida toda. Lutou para descobrir a verdade, para denunciar a tortura, os torturadores. 
Ela ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família; sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever.

 

*****


Eunice é uma mulher espetacular, sem igual.

No entanto, aquilo que encontramos e admiramos nela é também bem comum nas muitas mulheres brasileiras que conhecemos – ela é persistente, resiliente, paciente, dialoga com cuidado, cuida com interesse, tem forte senso de justiça.

Eunice é uma de nós, vive em nós! Que saibamos reconhecer o seu valor, a sua luta, mas também o nosso valor e a nossa força.


Viva Eunice Paiva. Viva o 8M. Viva todas nós!

E que o mundo aprenda logo a nos aceitar, nos respeitar, nos ouvir e compreender. Só temos a ganhar.

 

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Obs. : Hoje tem muitas referências sobre a história da Eunice Paiva. Mas se você quiser ter um resumo, tem esse vídeo do Politize! que eu gostei muito. E, claro, o livro Ainda estou aqui é um tem-que-ler também.


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